Sair na neblina de bicicleta, 6:30 da manhã e sentir suas
mãos congelarem não é uma das experiências mais agradáveis que tenho, mas é o
primeiro perrengue que passo quase todos os dias da semana para ir para a
escola que dou aula no período da manhã. Chegando lá, dou aula para turmas com
média de 20 alunos por sala. Se pensarmos que são 20 alunos de 4 e 5 anos,
crianças que não sabem nem ao menos amarrar o tênis vemos que a tarefa não é lá
muito simples. Salas mais fáceis e salas mais conturbadas todos professores
tem, bem como as salas impossíveis. E são essas salas impossíveis, que todos
temos, que nos trazem a crise e nos causam reflexões intensas.
Em uma certa turma do infantil, tenho várias crianças com
bastante energia! Não as culpo. Não é culpa delas as salas serem superlotadas e
que elas sejam tratadas como linha de produção. Mas mesmo não as culpando nos
deparamos com dilemas que estremecem nossas bases. Nessa sala possuem 5
crianças que demandam de MUITA energia do que vos fala pra que consiga promover
alguma atividade. Uma dessas crianças é extremamente agressiva e sabendo um
pouco do contexto que está inserida descobrimos que o pai batia na mãe, e que possuíam
problemas com drogas. Outra dessas crianças não tem pai e ficou extremamente
descontrolado tempos atrás no período de dia dos pais. Outra tem os pais se
separando e por isso tem ficado mais agressiva. São crianças de 4,5 anos, que
não tem culpa nenhuma de terem nascido onde nasceram bem como não tem culpa por
serem tratadas como linha de produção. Mas como tocar a aula e colocar em
prática toda a crença de uma educação transformado da realidade se nem ao menos
consigo promover minhas aulas com essas crianças? O dilema que fica posto é: tirar
os capetas da aula e ir deixando-os de castigo para tocar as atividades com as
outras 15 ou manter todos na aula e não conseguir fazer nada com os 20? A
universidade não me trouxe essas respostas.
Depois de 4 aulas no período da manhã, pego a bicicleta e me
mando pra escola que dou aula no período da tarde. Na quarta feira já é possível
sentir a garganta pegando e a rouquidão que está por vir. O cansaço começa a
dar um alô, mas o pensamento “tem gente que trabalha em carvoaria, você aguenta
umas aulinhas” me faz engolir as inquietações.
Diferentemente da
escola da manhã que fica próxima à região central da cidade, a escola da tarde
fica nas quebradas da cidade, e assim, o número de alunos pretos aumenta. Bem como
o número de alunos pretos, aumenta também a precariedade do espaço físico em
que dou aula. Na primeira metade da tarde dou aula para turmas com a mesma
média de 20 alunos e tenho que escolher entre fritar no sol em uma área com
grama ou dar aulas em um espaço de 4x10m. Com crianças de 3, 4, 5 anos em uma
espaço bem pequeno, elas agem como átomos sob pressão, se agitam a tal ponto de
darem cabeçadas umas contra as outras, várias vezes, fazendo forçadamente que
as aulas de educação físicas virem aquela coisa bisonha em que todos fiquem
sentados esperando a sua vez de fazer as atividades, fazendo com que cada uma
faça 2 ou 3 vezes a atividade por aula.
Hora da merenda. Hora de curtir os preciosos 20 minutos sem
ouvir vozes de crianças e tomar a bendita droga que me mantém durante o dia, cafézinho.
Começam os papos sobre avon, natura e logo começo a ouvir colega comemorando a
morte de crianças de 10 anos morta pela polícia. “Um bandidinho a menos”, disse.
Quem acha o congresso conservador, nunca pisou em uma sala dos professores.
Prefiro ouvir o choro de uma sala inteira do que ouvir isso.
Passado esse momento de esgoto no ouvido, volto as aulas. Com
a intensidade do sol dando trégua, consigo fazer as atividades na bendita
grama, dividindo o espaço com professoras que estão com suas salas nos
brinquedos do parque. O medo de ter um dos meus alunos atingido por uma balanço
é gigantesco, ainda mais depois de ser ameaçado pela diretora da escola de ser
trocado por outro professor (sim, sou professor eventual e não tenho
estabilidade alguma no cargo, bem como não recebo décimo terceiro, finais de
semana e nem férias e recebo meu sálario só depois de 2 meses da data que
trabalhei) caso alguma criança viesse a se machucar em minhas aulas. Deixo bem
claro às crianças que não devemos ir pra parte que estão os brinquedos. Os mais
velhos compreendem o pedido, mas na última aula, com um maternal 2, crianças de
3 anos, não fui lá muito bem sucedido, então vortemos à área de 4x10m e toca
qualquer coisa pra passar o tempo. Depois de uma jornada de trabalho não tenho
mais condições de chamar a atenção de criança por criança, então vortemos para
a sala. Dando aquelas broncas clichês de respeitar o professor e bla, bla bla,
me dou conta que estou puto é com a minha rotina, com minhas condições de
trabalho, com a necessidade de trabalhar 30h por semana com crianças, com
colegas de trabalho racistas e elitista e que elas não tem culpa disso, com a
proposta de reajuste no meu salário de 1%. As crianças tem 3 anos e não tem
culpa disso.
Pego minha bicicleta volto pra casa pensando em começar a
planejar minhas aulas deixando as crianças mais soltas, fazendo com que eu me
desgaste menos. Começar a dar migué nas aulas? Talvez, com 30h por semana, sendo
29h o máximo permitido, ganhando muito menos que um professor efetivo no cargo
não me parece loucura. Mas e a educação libertadora, a educação como
instrumento de transformação social, como fica? "Ahh, mas tem gente que trabalha em carvoaria, você aguenta isso" tento pensar e de pronto respondo a mim mesmo "não preciso aguentar porra nenhuma, nem eu e nem os caras da carvoaria!".
A noite vou pra faculdade, curso Pedagogia. Dentre intermináveis
debates sobre o nada e assuntos pertinentes, nenhum professor responde onde
fica a educação transformadora na prática diária dos professores, no chão de
escola. Nem na Pedagogia nem na Educação Física, já cursada, ninguém me
responde como coloco a educação transformadora na realidade totalmente caótica
das escolas públicas, sem condições de trabalho alguma. Aliás, como diz um
colega de trabalho e amigo, a maioria dos professores universitários que deitam
e rolam sobre teorias pedagógicas não aguentam por poucos minutos uma sala com
15 crianças. Talvez se trabalhassem nas meninas dos olhos deles, Colégio Porto
Seguro, Escola da Vila, Waldorf, etc, mas o mundo é diferente da ponte pra cá.
Para eles o problema é sempre pedagógico, nunca é estrutural. Jogam pro
individual o que é coletivo. Colocam como intra-sala o que é extra-sala, falam
como temos que fazer, só que falar é beeem mais fácil que fazer.
Termino o dia com uma cerveja e evocando Chapolin Colorado:
Quem poderá nos defender?