sábado, 27 de agosto de 2016

Desabafo sobre o dia-dia de um professor.

    Sair na neblina de bicicleta, 6:30 da manhã e sentir suas mãos congelarem não é uma das experiências mais agradáveis que tenho, mas é o primeiro perrengue que passo quase todos os dias da semana para ir para a escola que dou aula no período da manhã. Chegando lá, dou aula para turmas com média de 20 alunos por sala. Se pensarmos que são 20 alunos de 4 e 5 anos, crianças que não sabem nem ao menos amarrar o tênis vemos que a tarefa não é lá muito simples. Salas mais fáceis e salas mais conturbadas todos professores tem, bem como as salas impossíveis. E são essas salas impossíveis, que todos temos, que nos trazem a crise e nos causam reflexões intensas.

   Em uma certa turma do infantil, tenho várias crianças com bastante energia! Não as culpo. Não é culpa delas as salas serem superlotadas e que elas sejam tratadas como linha de produção. Mas mesmo não as culpando nos deparamos com dilemas que estremecem nossas bases. Nessa sala possuem 5 crianças que demandam de MUITA energia do que vos fala pra que consiga promover alguma atividade. Uma dessas crianças é extremamente agressiva e sabendo um pouco do contexto que está inserida descobrimos que o pai batia na mãe, e que possuíam problemas com drogas. Outra dessas crianças não tem pai e ficou extremamente descontrolado tempos atrás no período de dia dos pais. Outra tem os pais se separando e por isso tem ficado mais agressiva. São crianças de 4,5 anos, que não tem culpa nenhuma de terem nascido onde nasceram bem como não tem culpa por serem tratadas como linha de produção. Mas como tocar a aula e colocar em prática toda a crença de uma educação transformado da realidade se nem ao menos consigo promover minhas aulas com essas crianças? O dilema que fica posto é: tirar os capetas da aula e ir deixando-os de castigo para tocar as atividades com as outras 15 ou manter todos na aula e não conseguir fazer nada com os 20? A universidade não me trouxe essas respostas.

    Depois de 4 aulas no período da manhã, pego a bicicleta e me mando pra escola que dou aula no período da tarde. Na quarta feira já é possível sentir a garganta pegando e a rouquidão que está por vir. O cansaço começa a dar um alô, mas o pensamento “tem gente que trabalha em carvoaria, você aguenta umas aulinhas” me faz engolir as inquietações.

     Diferentemente da escola da manhã que fica próxima à região central da cidade, a escola da tarde fica nas quebradas da cidade, e assim, o número de alunos pretos aumenta. Bem como o número de alunos pretos, aumenta também a precariedade do espaço físico em que dou aula. Na primeira metade da tarde dou aula para turmas com a mesma média de 20 alunos e tenho que escolher entre fritar no sol em uma área com grama ou dar aulas em um espaço de 4x10m. Com crianças de 3, 4, 5 anos em uma espaço bem pequeno, elas agem como átomos sob pressão, se agitam a tal ponto de darem cabeçadas umas contra as outras, várias vezes, fazendo forçadamente que as aulas de educação físicas virem aquela coisa bisonha em que todos fiquem sentados esperando a sua vez de fazer as atividades, fazendo com que cada uma faça 2 ou 3 vezes a atividade por aula.

    Hora da merenda. Hora de curtir os preciosos 20 minutos sem ouvir vozes de crianças e tomar a bendita droga que me mantém durante o dia, cafézinho. Começam os papos sobre avon, natura e logo começo a ouvir colega comemorando a morte de crianças de 10 anos morta pela polícia. “Um bandidinho a menos”, disse. Quem acha o congresso conservador, nunca pisou em uma sala dos professores. Prefiro ouvir o choro de uma sala inteira do que ouvir isso.

    Passado esse momento de esgoto no ouvido, volto as aulas. Com a intensidade do sol dando trégua, consigo fazer as atividades na bendita grama, dividindo o espaço com professoras que estão com suas salas nos brinquedos do parque. O medo de ter um dos meus alunos atingido por uma balanço é gigantesco, ainda mais depois de ser ameaçado pela diretora da escola de ser trocado por outro professor (sim, sou professor eventual e não tenho estabilidade alguma no cargo, bem como não recebo décimo terceiro, finais de semana e nem férias e recebo meu sálario só depois de 2 meses da data que trabalhei) caso alguma criança viesse a se machucar em minhas aulas. Deixo bem claro às crianças que não devemos ir pra parte que estão os brinquedos. Os mais velhos compreendem o pedido, mas na última aula, com um maternal 2, crianças de 3 anos, não fui lá muito bem sucedido, então vortemos à área de 4x10m e toca qualquer coisa pra passar o tempo. Depois de uma jornada de trabalho não tenho mais condições de chamar a atenção de criança por criança, então vortemos para a sala. Dando aquelas broncas clichês de respeitar o professor e bla, bla bla, me dou conta que estou puto é com a minha rotina, com minhas condições de trabalho, com a necessidade de trabalhar 30h por semana com crianças, com colegas de trabalho racistas e elitista e que elas não tem culpa disso, com a proposta de reajuste no meu salário de 1%. As crianças tem 3 anos e não tem culpa disso.

    Pego minha bicicleta volto pra casa pensando em começar a planejar minhas aulas deixando as crianças mais soltas, fazendo com que eu me desgaste menos. Começar a dar migué nas aulas? Talvez, com 30h por semana, sendo 29h o máximo permitido, ganhando muito menos que um professor efetivo no cargo não me parece loucura. Mas e a educação libertadora, a educação como instrumento de transformação social, como fica? "Ahh, mas tem gente que trabalha em carvoaria, você aguenta isso" tento pensar e de pronto respondo a mim mesmo "não preciso aguentar porra nenhuma, nem eu e nem os caras da carvoaria!".

    A noite vou pra faculdade, curso Pedagogia. Dentre intermináveis debates sobre o nada e assuntos pertinentes, nenhum professor responde onde fica a educação transformadora na prática diária dos professores, no chão de escola. Nem na Pedagogia nem na Educação Física, já cursada, ninguém me responde como coloco a educação transformadora na realidade totalmente caótica das escolas públicas, sem condições de trabalho alguma. Aliás, como diz um colega de trabalho e amigo, a maioria dos professores universitários que deitam e rolam sobre teorias pedagógicas não aguentam por poucos minutos uma sala com 15 crianças. Talvez se trabalhassem nas meninas dos olhos deles, Colégio Porto Seguro, Escola da Vila, Waldorf, etc, mas o mundo é diferente da ponte pra cá. Para eles o problema é sempre pedagógico, nunca é estrutural. Jogam pro individual o que é coletivo. Colocam como intra-sala o que é extra-sala, falam como temos que fazer, só que falar é beeem mais fácil que fazer.

    Termino o dia com uma cerveja e evocando Chapolin Colorado: Quem poderá nos defender?