segunda-feira, 10 de novembro de 2014

"Respeitem meus cabelos"... longos!

Sempre gostei de futebol. Quando pequeno a seleção que mais me chamava atenção era a seleção argentina. Sempre me interessei mais pela vontade e sangue quente que os cabeludos demonstravam em campo do que pela habilidade e "alegria nas pernas" dos brasileiros.
No videogame eu sempre escolhia a seleção Argentina. Tirava o Batistuta do ataque para coloca-lo na zaga para que ele saísse driblando o time todo e fazer o gol. Pelo menos quando jogava com irmão, primos ou colegas não havia concorrência, o único que jogava com a Argentina era eu mesmo.

Talvez por essa simpatia com a seleção argentina, por ter assistido muito Cavaleiros do Zodíaco -onde o Shiryu era o preferido-, ou até pela fase roqueiro na pré-adolescência, eu raramente cortava meu cabelo curto. Na infância era adepto do cabelo tigelinha, mas depois disso sempre cultivei cabelos compridos. As vezes mais, as vezes menos, mas sempre compridos.

Não sei afirmar ao certo qual é a razão que faz com que um marmanjo de 23 anos ainda tenha um cabelo no meio das costas. Muitos homens já o tiveram em sua adolescência, na sua fase de colégio, até mesmo durante a faculdade, mas acabam por abandonar o corte -ou a falta dele, como no meu caso- porque cresceram, passaram dessa fase, porque é mais prático (o que ninguém discorda). Mas não são esses os casos em que eu queria gastar alguns ATP's com esse texto. Queria me prender ao fato de alguns que não possuem mais cabelo compridos ou que nunca os tiveram pois "é cabelo de menina".

Na terceira série, quando estudava em um colégio católico, me lembro do dia em que fui chamado pela orientadora/bedel/coordenadora (sei lá o que que aquela mulher era) e ela começou a dizer que eu precisava cortar meus cabelos pois eles já estavam muito grande. Não me lembro se a explicação era por causa de empestações de piolhos na escola, mas se assim fosse, as meninas também deveriam ter sido "convidadas" a rasparem suas cabeças. Coisa que não aconteceu. Se a desculpa fosse outra também seria incoerente da mesma maneira. Acho que essa escola nunca tinha visto a imagem de Jesus.

Já em outra escola, após o termino da aula junto de minha mãe, passamos em uma padaria. Minha mãe após fazer o pedido para o atendente, é interceptada pelo sujeito que vira e pergunta: "e a menina, não vai querer nada?". Na hora eu não percebi o "menina". Só fiquei sabendo após minha mãe me contar, um tanto puta com o cara, que ele havia me confundido com uma menina.

Em uma apresentação da escola, onde os alunos dançavam, apresentavam instrumentos praticados, recitavam poemas, etc. fui o apresentador do evento, abrindo e anunciando as atividades. Ao fim do evento, meu pai e meu irmão, que estavam na platéia, comentaram que algumas pessoas sentadas atrás deles não sabiam se eu era menino ou menina, "mas deve ser menino, porque chama Francisco, né?!"

Já durante a faculdade, nos trabalhos com recreação e lazer em acampamentos e colônias de férias era comum ver as crianças se atentarem ao meu cabelo e fazerem indagações e afirmações como: "tio, porque você tem cabelo de menina?", "porque você usa coque de balé?", "você é menininha, olha seu cabelo! ha ha ha".

Durante uma excursão ao acampamento Sítio do Carroção com a faculdade, os monitores responsáveis por apresentar as dependências e o modo de trabalho do acampamento expuseram claramente, sem nenhum peso na consciência, que homens cabeludos não poderiam trabalhar no local e que os tatuados deveriam esconder de qualquer maneira suas pinturas. Quando questionados por mim sobre o porque desse impedimento responderam com uma desculpa nojenta jogando a responsabilidade no mercado. Responderam algo do tipo: "é o gosto dos nossos clientes e não podemos fazer nada a não ser acatar". E pra me deixar surpreso, a professora universitária -que compõe a universidade, o lugar da produção do conhecimento, do livre-pensar, da elite intelectual e blábláblá- que nos dava aulas e estava conosco na visita soltou o golpe final: "é que homem de cabelo comprido é sujo! Imagina a piscina como ficaria cheia de cabelos?". Aquela visita serviria também para eles garimparem pessoas para trabalharem no local, e antes de irmos embora fui perguntado se havia possibilidade de eu cortar meu cabelo para trabalhar lá. Quase fui. Só que não.

Que algumas crianças pensem dessa maneira e questionem a minha imagem que não condiz ao padrão construído de homem, eu até posso entender e até torna-se engraçado a sinceridade com que falam. Mas pessoas já marmanjas, com barba na cara, com título de Doutora, que já viu e viveu de tanta coisa, em pleno século 21, com pensamentos tão ultrapassados, pra não dizer retrógrados, é inaceitável.

É possível analisar os relatos de duas maneiras. Ser taxado de "menininha" no sentido de inferiorizar as mulheres e no sentido de inferiorizar os homossexuais.
Ser confundido com uma mulher não era e continua não sendo motivo pra se ficar indignado. Não teria problema nenhum se eu fosse uma, e eu mereceria o mesmo respeito que tenho sendo homem. Ser uma "menininha" não faria de mim um ser humano inferior e menos digno, nem mais sensível e indefeso.  E também não significaria que eu gosto de rosa.
Ser taxado de "menininha" também pode ser ofensivo aos homossexuais. Como se o fato de eu querer parecer uma menina pudesse fazer de mim diretamente um homossexual, e isso ser motivo de chacota.* Zombar do cabelo do outro, tentando desmoraliza-lo por ser um possível "viadinho" também acaba por colocar os homossexuais como pessoas de segunda linha, pessoas, assim como as mulheres, inferiores. Como se ser cabeludo fosse característica exclusiva de mulheres ou de homossexuais.

Eu não deveria ter me sentido ofendido com esse tipo de coisa, como me senti em algumas vezes. Já me senti ofendido, mas não me sinto mais.

Atualmente, quando crianças tomam essas atitudes, eu serei pedagógico e explicarei como sempre expliquei: "sua avó ou sua mãe tem cabelos curtos, não tem? Elas são homens por causa disso?". As crianças ficam com um nó na cabeça que só o futuro dirá se entenderam a mensagem ou não.
Agora, gente véia de guerra vindo fazer essas piadinhas, que não se sintam ofendidas em serem taxadas de opressoras. O machismo e a homofobia, assim como todas as opressões, permeiam todos nós. Alguns mais outros menos, mas estão em todos nós. Constatarmos sua existência já é um passo a frente na luta contra eles.

 *Nem toda pessoa que deseja parecer mulher é homossexual, sei disso. Mas como não domino as nominações corretas, não sei especificar corretamente, preferi pecar pela generalização do que me atrapalhar.

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