segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A riqueza das pessoas e das coisas

Nunca fui um cara exotérico. Sempre achei um porre as pessoas que falam a todo momento de energia, de amor, de "good vibes". Pessoas que colocam o ódio como antagônico ao amor. Sempre achei um imenso bla bla bla. No entanto, há alguns lugares que nos provocam sensações tão particulares que aos olhos desavisados podem parecer o mesmo exoterismo que eu não tenho paciência.
Faço boxe a algum tempo em um lugar que anteriormente foi um galpão abandonado da estação de trem de Rio Claro. Hoje o local abriga um projeto social que visa, mais do que formar atletas, ajudar na educação da molecada que o frequenta. Se olharmos pra cima da academia de boxe veremos teias de aranha e um teto sem forro, pra baixo veremos um cimento queimado, nas paredes inúmeras fotos de boxeadores, stencil, e no batente da porta veremos escrito "racistas, fascistas, não passarão!". Nessa academia de boxe acontece sarais e festas acessíveis à todos. Nessa academia de boxe a riqueza está nas pessoas e não nas coisas.
Quem já frequentou estádios de futebol sabe as excentricidades que lhe são próprias. Assistir um jogo pendurado ao alambrado, podendo dar uns xingos no ouvido do bandeirinha e ele ouvir, não ter outra opção que não a arquibancada de cimento para se sentar, poder assistir jogos ao lado do Sardinha ou da Rainha da Leões, são experiências que arena nenhuma proporcionará ao torcedor. As arenas podem ser imponentes como as seculares igrejas, ter um banheiro com cheiro de lavanda e cadeiras personalizadas para cada glúteo, mas jamais será frequentado pelo grosso da torcida de um time. Um ingresso à 100 reais impossibilita o verdadeiro torcedor "curintia" de frequentar os jogos de seu time. Time que se diz do povo. Trabalhador só frequenta arena para trabalhar. Nas arenas a riqueza está nas coisas, não nas pessoas.
Uma vez vi um documentário que mostrava o dia em que pessoas de favelas, ocupações e moradores de rua do Rio de Janeiro resolveram visitar um shopping frequentado por pessoas com grana. Quando os pobres começam a entrar no shopping as lojas começam a se fechar com medo de assaltos, vendedores fazem cara de merda e os seguranças ficam alvoroçados impedindo os indesejados visitantes de passearem. Todos naquele luxuoso shopping ficam com medo do que essas pessoas, quase todos pretos, possam fazer. Nas ocupações e nas favelas, com toda certeza -e ao contrário do shopping- a riqueza está nas pessoas e não nas coisas.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Explorados e oprimidos, Marx e Paulo Freire

Paulo Freire é praticamente uma unanimidade no que diz respeito as lutas sociais no Brasil. Se Marx dizia que no capitalismo o sujeito revolucionário é a classe trabalhadora, Paulo Freire dizia que só a luta do oprimido poderá libertá-lo da opressão. 

À primeira vista, os dois estão na mesma linha de pensamento. Mas apenas à primeira vista. Podemos colocar a afirmativa de Marx, formulada através do método materialista histórico-dialético, no mesmo balaio da afirmativa de Paulo Freire? Considerar explorados e oprimidos sinônimos é um equívoco? Será que os movimentos sociais que reivindicam "lugar de fala" e "protagonismo" utilizam de tal método? 

Os movimentos sociais classistas, que utilizam-se do método marxista, partem sempre da questão econômica para avaliar um fenômeno. Seja ele mais abrangente e mundial, seja ele mais específico. Se o que move a humanidade são as relações sociais de produção e suas contradições, devemos analisar todas as contradições a partir das condições materiais, econômicas. A afirmativa de Marx é feita visando romper com nossa sociedade dividida em classes sociais. De todas elas. "Os trabalhadores nada tem a perder com a revolução, apenas seus grilhões". Já a afirmação de Paulo Freire, de que apenas os oprimidos podem libertar-se da opressão, embora pareça aos olhos inocentes a mesma afirmação de Marx, não é. Marx se refere aos explorados, Paulo Freire aos oprimidos, e é necessário diferenciar um do outro.

 Nem todo oprimido é explorado, mas todo explorado é oprimido. A opressão acontece numa aparente super-estrutura. Elitismo, machismo, racismo, lgbttfobia são opressões. Exploração é estrutural, é econômica. Uma mulher rica, um preto rico, um gay rico, são oprimidos, não explorados. Explorados são os que produziram nossa geladeira, fogão, quem limpa os ambientes de trabalho, quem construiu os prédios da cidade. Opressão e exploração possuem relação direta, mesmo que os "pós-modernos" neguem isso, mas não são a mesma coisa.

Tratar de opressão como se não houvesse relação alguma com a exploração de classe é um equívoco gigantesco, isso quando não for tendencioso. Tratar de um sem o outro já foi feito anteriormente na história, quando movimentos sociais de esquerda deixavam as opressões para um segundo plano, terceiro plano, ou para nunca. No entanto, a luta contra opressões, deixando para segundo plano, terceiro plano, ou para nunca, é relativamente recente em nosso cenário.
A luta contra opressões se desvinculou das lutas classistas muito por culpa destas mesmas organizações classistas colocarem essas opressões como menos importantes dentro da -suposta- luta suprema contra o capital. Melhor para o capital. Essa marginalização da demanda contra as opressões resultou em uma atual fragmentação das lutas e que findam em si mesmas. Esse processo se mostra forte tanto no movimento negro, quanto no feminista e lgbtt. Uma frase que simboliza muito bem esse fenômeno de universalização do que não é universal é o emblema feminista:"somos todas irmãs". Analisando essa frase, podemos deduzir que o ser mulher significa um coletivo comum à todas essas oprimidas, e que uma deve se amparar na outra contra as opressões. O perigoso é que essa mulher pode ser tanto Rosa Luxemburgo quanto Katia Abreu. Tanto uma comunista, revolucionária, quanto a senadora, latifundiária e acusada de trabalho escravo que revidou à interpelação machista de José Serra jogando vinho na cara dele.

A fragmentação das lutas contra opressão, sua desvinculação da luta político-econômica, interessa ao capital pois ela pode ser parcialmente cooptada. Basta vermos as recentes propagandas de multinacionais que aparentam se colocar contra a homofobia (boticário), contra o racismo (Coca-cola), e podemos ter clareza de como o mercado coopta essas lutas pra poder aumentar seu lucro. E essa cooptação é parcial, pois é impossível acabarmos com as opressões dentro de um sistema, capitalista, que se beneficia materialmente delas. Seria surreal acreditar que toda luta de Zumbi, Dandara, Malcolm-X e os Panteras Negras fossem apenas para que existam propaganda para cabelos crespos e representatividade.

Partindo de uma visão materialista de organização, esses movimentos sociais sectários, chamados de pós-modernos, possuem um caráter de desconsiderar à exploração de classe e o elitismo de suas demandas. Generalizam os oprimidos como iguais ao mesmo tempo que particularizam suas lutas, isolando-as do contexto econômico, como se a opressão fosse o motor da história.

Não podemos usar o "protagonismo" que Marx coloca aos trabalhadores da mesma maneira que Paulo Freire coloca as opressões. Se em uma opressão considerarmos que "somos todos X", dentro desse X com certeza haverá Rosas Luxemburgo e Katias Abreu. Com certeza Rosa Luxemburgo nunca chamaria Miss Motosserra de Ouro de companheira.

Paulo Freire é um dos principais nomes no que diz respeito a educação de oprimidos e explorados que possuímos. Mas é necessário não colocá-lo no forno e ficarmos requentando-o à todo momento. Questionar quaisquer afirmações seja de quem for é imprescindível para a luta dos trabalhadores e a conquista de uma nova sociedade.